31 março 2008

O Caso do Pintor que não via cores

Quando o vimos pela pri­meira vez, a 13 de Abril de 1986, Jonathan L. era um homem alto e muito magro, que evidenciava uma recente perda de peso. Exprimia-se com facilidade, de uma forma inteligente, analítica e viva, mas num tom de voz baixo e sem vida. Raramente sorria; estava manifestamente deprimido. Captá­mos um sentimento de mágoa interior, de medo e tensão, refreado com dificuldade por detrás do seu discurso civilizado.
Contou-nos que o acidente tinha sido acom­panhado por uma amnésia passageira. Claro que ele, naquela altura - ao fim da tarde de 2 de Janeiro -, fora capaz de rela­tar devidamente à polícia o que se tinha passado. Seguira depois para o seu estúdio, para se encontrar com alguém que estava interessado no seu trabalho, mas abreviou este encontro devido a uma crescente e intensa dor de cabeça. Quando chegou a casa, queixou-se à mulher de dores de cabeça e de se sentir confuso, mas não mencionou o acidente. Caiu então num longo e quase letárgico sono. Só na manhã seguinte, quando viu o radiador do seu carro amolgado, é que a mulher lhe per­guntou o que se tinha passado. Ao não obter uma resposta clara ("Não sei. Talvez alguém lhe tenha batido"), ela percebeu que se devia ter passado algo de grave.
Jonathan I. foi em seguida para o estúdio e encontrou, em cima da secretária, uma cópia do relatório feito pela polícia sobre o acidente. (...) Mas, ao pegar nele, não conseguiu ler nada. Via caracteres de diferentes tama­nhos e formas, todos nitidamente, mas parecia-lhe "grego" ou "hebraico". (...) (Esta alexia, ou incapacidade de ler, durou cinco dias, mas depois parece ter desaparecido.)
Apercebendo-se de que devia ter sofrido um traumatismo, ou qualquer espécie de lesão cerebral provocada pelo acidente, Jonathan I. telefonou ao médico, que conseguiu que ele fosse visto e fizesse exames num hospital local. Embora, como nos dizia na sua pri­meira carta, tivesse sido detectada nesta altura a dificuldade em distinguir as cores, juntamente com a enorme alexia, ele só teve consciência da alteração das cores no dia seguinte.
Nesse dia, decidiu ir de novo trabalhar. Parecia-lhe estar a conduzir através de nevo­eiro, (...) tudo parecia enevoado, descorado, acinzentado, indistinto. O desnorteamento e medo transformaram-se então num senti­mento de horror. Já perto do estúdio, a polí­cia mandou-o parar: disseram-lhe que tinha passado dois sinais vermelhos. Se tinha reparado nisso? Não, respondeu ele, não se tinha sequer apercebido de ter passado por nenhum semáforo. Mandaram-no sair do carro. Após verificarem que estava sóbrio, mas aparentemente baralhado e doente, "multaram-no e aconselharam-no a procurar um médico.
Jonathan I. chegou ao estúdio aliviado, esperando que a terrível névoa tivesse já passado, que tudo estivesse de novo nítido. Mas, assim que entrou, achou todo o seu estúdio - cujas paredes estavam decoradas com os seus quadros coloridos - completa­mente cinzento e destituído de cor. (...)
Ao horror juntou-se o desespero: nem sequer a sua arte tinha significado, e ele já não conseguia imaginar como continuar.
As semanas que se seguiram foram extre­mamente difíceis. Jonathan I. mal conseguia suportar a mudança no aspecto das pessoas ("eram o estátuas cinzentas animadas"), tal como não conseguia suportar a sua própria ­aparência quando se via ao espelho: evitava as relações sociais, e as relações sexuais tornaram-se impossíveis. Via a pele das pessoas, a pele da mulher, a sua própria pele, de um cinzento horrendo: a "cor-de­-pele" era agora, para ele, "cor-de-rato". (...)
Achava os alimentos repugnantes, com aque­le aspecto acinzentado e morto, e tinha que fe­char os olhos para con­seguir comer. Mas isso não ajudava muito, porque a sua representação mental de um tomate era tão negra como a sua aparência. (...)
Assim, incapaz de rectificar mesmo a ima­gem interior, a ideia, de diversos alimentos, Jonathan foi-se virando progressivamente para alimentos brancos e pretos - azeitonas pretas com arroz branco, café preto e iogurte. Estes, pelo menos, tinham um aspecto relativamente normal, enquanto a maior parte dos alimentos tinha agora um aspecto terrivelmente anormal.
Deparava-se com dificuldades e angústias de praticamente todos os géneros na sua vida diária (...). A mulher tinha que lhe escolher a roupa, e esta dependência era­-lhe difícil de suportar; mais tarde passou a ter tudo classificado nas gavetas e no armário - peúgas cinzentas aqui, amarelas ali, gravatas identificadas, casacos e fatos devidamente marcados para evitar incon­gruências evidentes e confusões. À mesa tiveram que adoptar práticas e posições fixas e rituais, sem o que ele poderia ser levado a confundir mostarda com maio­nese, ou "ketchup" com compota. (...) Jonathan I. já não conseguia ir a museus ou a galerias, nem ver reproduções a cores dos seus quadros favoritos. (...)
Quando pedimos a Jonathan para exami­nar e pintar uma cópia de um espectro colorido, apenas conseguiu ver o preto e o branco e várias sombras de cinzento, e pin­tou o que via. Intrigantemente, a sua per­cepção do espectro não se assemelhava em nada à das pessoas com cegueira das cores provocada por problemas de retina. (...)
Foi esta a história que obtivemos de Jona­than I. - a história do colapso abrupto e total da sua visão da cor, e as tentativas que fez para viver num mundo a preto e branco; uma história incompatível com qualquer problema inato ou degenerativo dos olhos, mas indicativo de um súbito desarranjo nas partes do cérebro necessárias à representa­ção interna - o ver - das cores. (...)
O interesse científico de todas estas per­turbações cerebrais perceptivas adquiri­das reside no facto de os seus distúrbios nos poderem mostrar como é que o mundo conceptual é construído. Doentes como Jonathan mostram-nos que a cor não é um dado, antes é percepcionada graças a um processo cerebral específico e extraordinariamente complexo. O mesmo se aplica às percepções do movimento, da profundidade e da forma: todas elas nos parecem fazer parte da ordem natural das coisas até vermos pacientes que as perderam, doentes que sofrem de cegueira do movimento, de cegueira da profundidade ou de cegueira da forma (agnosia visual), provocadas por lesões cerebrais altamente específicas.

Oliver Sacks e Robert Wassennan, in Jornal Público, de 27 de Setembro de 1990

20 março 2008

Colecção Grandes Pensadores do Público - Consulta aqui

O jornal Público lançou, na passada segunda-feira, uma colecção de vinte volumes sobre grandes pensadores, na maioria filósofos. Com o título «Grandes Pensadores», a colecção aborda a vida, o pensamento e a obra de cada pensador, sendo que cada livro terá mais de 300 páginas e custa 12,90 euros. O primeiro volume tem Sócrates e Platão como protagonistas. Sai sempre à Segunda-feira.
Eis o plano das edições:
1. Sócrates e Platão
2. Aristóteles
3. Séneca
4. Santo Agostinho
5. São Tomás de Aquino
6. René Descartes
7. Blaise Pascal
8. Jean-Jaques Rosseau
9. Adam Smith
10. Immanuel Kant
11. Hegel
12. John Stuart Mill
13. Charles Darwin
14. Karl Marx
15. Friedrich Nietzsche
16. Sigmund Freud
17. Ortega y Gasset
18. Karl Popper
19. Jean-Paul Sartre
20. Lévi-Strauss

06 março 2008

Argumentação, Verdade e Ser

A argumentação, além das utilidades que já estudámos, serve ainda um outro fim muito importante: serve para pôr à prova as ideias que temos e fazer avançar o conhecimento. Dada a dificuldade humana em encontrar a verdade, o confronto de ideias (argumentos) e a possibilidade de os nossos argumentos poderem ser refutados leva-nos a ter de fundamentar bem as nossas teses, logo, a ser cautelosos quanto ao que afirmamos.
É certo que nem sempre as pessoas estão interessadas em defender a verdade, seja por ignorância, seja por má vontade. E isto leva a disputas e a controvérsias que ocorreram já na Grécia antiga entre sofistas e filósofos, como se pode ver no diálogo Górgias, onde Platão põe Sócrates a discutir e ridicularizar os seus adversários de debate. E a razão dessa divergência é agora fácil de compreender: enquanto para os sofistas qualquer tese (opinião) era, em princípio defensável, para Platão só o verdadeiro conhecimento era digno de ser defendido. Para isso, era necessário que Platão tivesse uma teoria consistente sobre a verdade, o conhecimento, a realidade, etc.
Com efeito, tinha; e é uma teoria de tal modo consistente que tem sido respeitada ao longo dos séculos. Um filósofo do séc. XX, famoso matemático e colega de trabalho de Bertrand Russel, de seu nome Whitehead, disse que «a filosofia ocidental são notas de rodapé na Filosofia de Platão».
Qual é essa teoria? Resumidamente podemos dizer que a filosofia de Platão faz duas grandes distinções, correlativas uma da outra, entre o plano ontológico (ser) e o plano gnosiológico (conhecimento). Distingue, por um lado, entre a ilusão (mundo visível) e a realidade (mundo inteligível), e, por outro, entre o erro (opinião) e o conhecimento (sofia).
Segundo Platão, há vários níveis de realidade (uma sombra é menos real do que um objecto físico, e este é menos real do que uma forma pura), e uma suposição é menos «verdadeira» que uma crença; do mesmo modo, uma crença é menos verdadeira do que um conhecimento científico. Para este filósofo, a investigação começa pela recusa do mundo aparente (que é construído em nós a partir das informações fornecidas pelos sentidos), e pelo desenvolvimento de capacidades intelectuais que nos permitam «ver» um mundo invisível aos sentidos: um mundo inteligível, só visível à razão. Este caminho de descoberta é simultaneamente um caminho de auto-aperfeiçoamento do indivíduo e um caminho de descoberta da realidade.O conhecimento da verdade é, afinal, o conhecimento da realidade, de tal modo que verdade e realidade acabam por ser sinónimos.
A realidade é, então, segundo Platão, formada pelas estruturas inteligíveis (racionais) da realidade, por aquilo que faz com que a matéria dos objectos obtenha uma determinada organização. Os próprios objectos, a que teríamos a tentação de chamar «reais», seriam apenas «cópias» desses modelos a que ele chamou eidos ou formas puras e só poderiam ser vistos através da clara visão da razão.
Isto não significa que Platão se desinteressasse dos assuntos mais «mundanos» da cidade onde vivia. Daí que nas suas obras encontremos muitos diálogos sobre a justiça e a organização da cidade, o melhor tipo de governo, etc. O que acontece é que as preocupações de Platão com a Política, com o Conhecimento, com a Moral, com arte, etc., tinham sempre como objectivo criar condições para a descoberta da verdade e para a prática do Bem. Para Platão, o Bem é o aperfeiçoamento dos seres humanos através do desenvolvimento da consciência e da Ciência.
Isto faz aumentar a responsabilidade do sábio: uma vez que conhece, tem também o dever de ajudar os seus irmãos humanos a libertar-se da ignorância. Platão considerava que «o rei deveria ser filósofo e o filósofo deveria ser rei» porque, acima de tudo, o governo da cidade (a política) deveria ser dirigido por pessoas sábias. É neste contexto que se devem tentar compreender as discussões sobre a retórica, e as críticas que Platão dirigiu aos sofistas, pois, para ele, nem todas as opiniões são defensáveis, e a argumentação deve estar ao serviço de um ideal mais elevado, fundamentado num conhecimento verdadeiro do que é a realidade e de quais são os fins que dão sentido à existência humana.
É também por isso que Platão é um autor que ainda hoje pode ajudar-nos a pensar em que sentido e para que fins devemos nós, humanos do séc. XXI, utilizar a técnica e a Ciência.

705 Azul, Vários autores, Texto Editora

Programação das AULAS DE FILOSOFIA - RTP Madeira com o Prof. Rolando Almeida

Podes aceder às aulas de Filosofia da RTP Madeira, lecionadas pelo Prof. Rolando Almeida (na foto), acedendo aos links abaixo.  TELENSINO (R...